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9 de setembro de 2017

O Assassinato dos Rios Urbanos

Órgãos obsoletos de engenharia de urbanização e de obras públicas estão dizimando os rios e córregos que correm nas cidades brasileiras


Paulo Bidegain

Em artigo recente, os engenheiros indianos Nivedita Gogate e Pratap Rawal realizaram uma análise global das tecnologias e obras de drenagem urbana (Sustainable Stormwater Management in Developing and Developed Countries: a Review. Proc. of Int. Conf. on Advances in Design and Construction of Structures, 2012). Segundo eles, tradicionalmente a água da chuva (runoff) é considerada um tipo de água indesejável em áreas urbanas, necessitando ser desviada o mais rápido possível  através de canais retos e concretados. Ao contrário do conceito antigo que considerava as águas pluviais como limpas, na verdade elas carregam uma série de contaminantes.

Gogate e Rawal citam ainda que na década de 1960, o único imperativo que guiava o planejamento e implantação de obras de drenagem urbana era a quantidade, com o objetivo de minimizar cheias. Nas décadas subsequentes o objetivo do manejo das águas de chuvas diversificou-se para incluir a qualidade, a saúde dos ecossistemas, reuso e integração com o planejamento urbano, além do componente quantitativo. O novo enfoque da engenharia de gestão de águas urbanas passou então a minimizar a impermeabilização e maximizar a infiltração, sendo conhecido como LID (EUA), WSUD (Austrália) e SUD (Inglaterra). Estas técnicas, quando implementadas na escala de bacia hidrográfica acopladas ao planejamento urbano, podem ser a solução sustentável para a gestão das águas pluviais.

Em que pese o avanço tecnológico neste campo na escala mundial, no Brasil este é um ramo estagnado da engenharia. Nossa engenharia, em diversos campos, é uma das mais avançadas no plano internacional, à exceção de uma, a engenharia de drenagem urbana, que chamarei de EDU daqui para frente.

A EDU brasileira pratica o que há de mais obsoleto, caro e apalermado no planeta, aplicando os mesmos enfoques, fórmulas e obras que os engenheiros desenvolveram no século XIX, sem qualquer avanço. A EDU move-se com base no lema que “rio bom é rio morto”, confinando-os em caixões de concreto. As obras transformam rios e córregos em galerias de águas pluviais ou valas concretadas a céu aberto e, no cúmulo do absurdo, às vezes cobertas com lajes, convertendo-as em túneis cujo ar acumula gases advindos da putrefação das águas lotadas de matéria orgânica.


Valão de Icaraí, antigo Rio Icaraí (Niterói, RJ)

Em geral, bacias hidrográficas urbanas apresentam uma parte de suas terras com superfícies completamente impermeabilizadas por ruas, calçadas e telhados, causando sérias alterações no escoamento, conforme ilustra a figura abaixo, produzida pela EPA.    
 


A figura mostra que, em áreas urbanas, em média 55% das águas das chuvas escoam para o sistema de drenagem e apenas 15% infiltram. No ambiente natural 10% das águas escoam para rios e córregos, 50% infiltram-se e 40 % são devolvidos a atmosfera por evapotranspiração.
  
Os engenheiros também impermeabilizam os rios, concretando seus leitos e barrancas e assim isolando-os das terras e dos aquíferos adjacentes, impedindo a infiltração. Com isso todos os contaminantes lavados das ruas e calçadas pelas chuvas são concentrados no canal. O corpo receptor final da rede paga o pato, recepcionando águas lotadas de lixo, contaminantes e matéria orgânica provenientes das ruas e calçadas. 
  
A rede de canais concretados e impermeáveis gera custos exorbitantes para manutenção, que inclui reparos e remoção de lixo e sedimentos, muitas vezes além da capacidade financeira das Prefeituras. Para piorar, a maioria das galerias é baixa demais e cria ambientes insalubres de trabalho, impedindo que os operários adentem e fiquem de pé para realizar serviços de manutenção. Uma solução genial. Como resultado, os custos para limpeza sobem as raias do absurdo para alegria das empreiteiras.

Em mais de 99% dos municípios brasileiros as Prefeituras sequer possuem mapas atualizados da rede e relatórios documentando as caraterísticas dos canais como formato, largura, cota e outras, jamais estimaram o custo anual de limpeza e reparo e não operam com base em uma programação técnica. A gestão é baseada na emergência e no improviso e naquela conhecida prática “quem sabe é o fulano”.

A Constituição Brasileira determina que incumbe ao Poder Público “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas” (art. 225, § 1º, inciso I). Sob a perspectiva legal, obras deste tipo colidem com a Constituição Federal, pois causam grandes danos ambientais ao transformarem rios e córregos em áreas degradadas, além de incrementar a poluição do corpo receptor, seja ele uma baia, praia, lagoa, represa ou outro rio. É por este motivo que a Resolução 001/1986 do Conselho Nacional do Meio Ambiente exige Estudo de Impacto Ambiental (EIA) como pré-requisito para aferir a viabilidade ambiental de obras de drenagem urbana (artigo 2 inciso VII). Em síntese, projetos drenagem urbana demandam EIA para serem licenciados.    

Cabe ressaltar que tais obras aniquilam qualquer possibilidade de restaurar rios urbanos. Mesmo que a água um dia seja limpa, jamais haverá vida aquática nos valões escuros, por uma simples razão: peixes e outros animais não comem concreto e plantas precisam luz para fazer fotossíntese.      

Desde o final da década de 1980, especialmente no Japão, América do Norte, Europa, Austrália, Nova Zelândia e até na Índia, os engenheiros estão promovendo uma drástica mudança nas obras de drenagem urbana, olhando a bacia como um tudo e projetando soluções que aumentem a infiltração (praças, parques, estacionamentos e outras permeáveis) e reduzem a poluição das águas de escoamento urbano (runoff).    

Em nossa região temos duas organizações públicas que praticam a destruição dos rios urbanos, a EMUSA em Niterói e a Fundação Rio Águas no Rio. Por ironia, a capital tem a palavra “Rio” em seu nome. Mas de janeiro a janeiro os rios são dizimados e envelopados em concreto. Como Niterói quer dizer “água escondida”, a EMUSA interpreta ao pé-da-letra. Os rios são destruídos e tapados, passando suas águas a correrem de forma escondida, causando sérios dados a Baia de Guanabara e as lagoas de Piratininga e Itaipu.  

Diz o adágio popular: errar é humano, repetir o erro é burrice. Hora de abandonar a inércia e a preguiça e sair da zona conforto em busca de soluções sustentáveis. Não há desculpas. É só querer.

A Secretaria Executiva da Prefeitura de Niterói esta planejando a renaturalização do rio Jacaré, afluente da lagoa de Piratininga, com apoio da Corporação Andina de Fomento, de especialistas do exterior e do SubComitê de Bacia (CLIP), constituindo uma excelente oportunidade para que engenheiros da EMUSA e da Fundação Rio Águas conheçam as novas técnicas e abandonem suas obras obsoletas do século XIX, ingressando na modernidade.   

A Caixa Econômica Federal tem há vários anos o Programa de Drenagem Urbana Sustentável, que inclusive assessora as Prefeituras na elaboração de projetos.  Abaixo o link do referido programa:

Para conhecer mais:

Manual de Drenagem Urbana da Cidade de Portland (EUA), de 2016, com amplo leque de soluções

Drenagem Urbana Sustentável, documento do Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo: www.pha.poli.usp.br/LeArq.aspx?id_arq=304

Site da Agência de Proteção Ambiental dos EUA dedicado ao Programa de drenagem urbana.

Manual of River Restoration Techniques  - River Restoration Centre's (RRC/Inglaterra)

Digitar no Google “sustainable stormwater management” que centenas de soluções aparecem.